terça-feira, 27 de março de 2007

  Achado pode ser roubado: os limites entre abandono e perda da coisa

Diz o ditado popular que “achado não é roubado”. Mas até que ponto a perda de uma coisa é capaz de transferir a posse para outra pessoa?

No Direito Civil brasileiro, a idéia de posse baseia-se numa noção de fato, e não de direito. Basta que exista a situação fática de posse para que ela seja reconhecida. A posse caracteriza-se pela presença de dois elementos: um elemento objetivo (corpus) e um elemento subjetivo (animus). O Código Civil de 2002 assim define o possuidor em seu art. 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”

A idéia de posse se contrapõe à de propriedade, esta sim uma relação de direito, instituída com base em um título judicial, e exercida em caráter exclusivo.

Embora as hipóteses de perda e abandono de uma coisa apareçam como causas de perda da posse, nem sempre o terceiro que encontra algo perdido tem o direito legítimo de se considerar possuidor do bem encontrado. O primeiro ponto a ser esclarecido é o fato de que alguém achar um bem não lhe dá propriedade no direito brasileiro, o que já é suficiente para derrubar o ditado popular. Desse modo, não se perde direito de propriedade pela perda da coisa. Perde-se a posse, que é relação de fato. Já o abandono faz perder também a propriedade. Se alguém achar algo, sem que a situação caracterize inequivocamente um abandono, a atitude correta a ser tomada é entregar a coisa à autoridade municipal, para que esta instaure um processo administrativo para buscar o efetivo proprietário, através da publicação de um edital informando as características do bem encontrado.

Perder algo significa não saber onde essa coisa está. Se a pessoa perdeu algo, mas ainda está procurando, nesse espaço de tempo em que procura não se tem ainda como perdida a coisa. Se alguém acha a coisa na rua enquanto o proprietário anterior ainda está procurando, tudo vai depender das circunstâncias do fato concreto. O proprietário ainda estava procurando pela coisa? Quanto tempo se passou desde a perda? O proprietário já tinha se dado conta de que havia perdido a coisa? Se ele parou de procurar, a coisa que era perdida (res desperdita) se torna res derelicta (coisa abandonada), mas ainda lhe resta a opção de entrar com ação reivindicatória, que discute propriedade (e não posse). Pode ainda tentar provar que o outro possuía de má fé a partir de uma ação possessória. Se o proprietário não parou de procurar, o bem permanece coisa perdida, e, por isso, subsiste para quem encontra a obrigação de restituir ao dono.

Já o abandono de algo (e não a simples perda) precisa ser provado. Para saber ao certo, o ideal seria poder penetrar na mente daquele que abandonou a coisa. Como isso não é possível, a diferença entre perda e abandono é percebida pelo contexto, pelas circunstâncias que envolvam o fato. Não há forma prescrita para o abandono. Pode haver a prática de atos que demonstrem que a coisa foi abandonada, como depositá-la em um lixo, ou deixá-la em uma área desabitada. A vontade manifesta (exteriorizada) de quem largou a coisa demonstra se foi perda ou abandono. O arrependimento não restaura a posse. Para o direito, vale a vontade humana demonstrada. Pode-se no máximo começar a ter a posse de novo.

Assim, perder alguma coisa não faz com que automaticamente a posse se transfira para quem encontrar a coisa. Além disso, a propriedade permanece (pelo menos até decorra o prazo de 5 anos – de acordo com o art. 1.261 do Código Civil, esse é o tempo que deve transcorrer para que alguém transforme a posse de coisa móvel em propriedade, mesmo que não tenha título judicial, ou que aja de má fé). No caso de abandono, começa a contar desde logo prazo para usucapião. A posse é perdida no momento de abandono da coisa.

Bonus track

Aplicação prática disso tudo no ambiente virtual: no Second Life, a propriedade privada é assegurada de tal forma que o abandono de um objeto, ou a perda de algo, não transfere a posse – é dever daquele que a encontrar, ou do proprietário do território onde a coisa foi perdida, devolver o item perdido ao inventário daquele que perdeu a coisa. O item perdido retorna automaticamente para a categoria “Lost and found” – mesmo que tenha sido abandonado :P Para transferir a posse de algo para alguém, é preciso realizar a tradição da coisa (entrega online, que requer aceitação por parte daquele que recebe). Mas se o item tiver sido criado por quem transfere a posse, o nome do criador permanecerá anexado à coisa (a propriedade intelectual é resguardada).

Já fiz o teste. Perdi sistematicamente várias coke cans em diversas partes do mundo virtual de SL. Todas foram devidamente devolvidas pelos respectivos proprietários dos terrenos. A última levou quase uma semana. Mas foi devolvida.

Até que ponto é insano pensar em fazer um TCC sobre posse e propriedade no Second Life?

(Fonte de inspiração: aula de Civil IV de hoje)

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Comentários:

Anonymous Anônimo disse:
Fascinante esta aula. Sinto-me entuasiasmada com seu progresso na lei. Tenho certeza de que será uma pessoa importante para seu estado e para o país.
 


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