sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

  O flamingo diferente

[Da série: "Amores impossíveis"; outra historinha envolvendo um animalzinho toscamente antropomorfizado e um romance absurdo... :P]

---

      Nas águas pantanosas de um lago qualquer de uma ilha perdida no meio do Oceano Pacífico vivia Fred, um rapaz meio retraído, bastante tímido, e com tendências à introversão. Na verdade, Fred era um flamingo autista, que vivia fechado em si mesmo, em um mundo próprio, onde as coisas adquiriam significações peculiares. O motivo de tamanha retração devia-se ao fato de que Fred era um pouco diferente dos demais: enquanto seus companheiros era todos brancos ou rosa (conforme a intensidade e a qualidade de suas plumagens), Fred era completamente verde.
      Como se não bastasse o fato já suficientemente embaraçoso de ser gago, Fred ainda precisava conviver com as piadinhas de mau gosto dos outros. Como uma forma de defesa, ele se fechava cada vez mais em si mesmo. Mas mesmo assim a opinião alheia ainda lhe atingia de certa forma (impossível mostrar-se indiferente à existência dos demais!). Ele vivia num constante sentimento de inferioridade, provocado pelas insinuações traiçoeiras de que era seguidamente alvo. Com o tempo, passou simplesmente a negar todos em bloco, e a se afastar das pessoas.
      Até que um dia o flamingo se apaixonou por um gerador de energia eólica solitário, estrategicamente posicionado ao lado do lago onde vivia. De início, Fred mostrou-se tímido, e tinha vergonha até de olhar para a turbina. Mas dentro de si borbulhava uma fervente paixão. Fred achava bastante sexy o murmurinho abafado emitido pelas pás de vento. Mas era só ele se pôr a pensar na turbina que algum peixe engraçadinho saltava no lago e exclamava:
      — Ei, Fred, não está maduro ainda!? — E todo o lago caía na gargalhada.
      Num instante, toda a confiança em si mesmo que vinha reunindo com seus pensamentos amorosos se esvaía... E ele voltava a ter pensamentos negativistas. Nessas horas, ele desejava conhecer Alice, para poder escapar para um mundo onde o absurdo fosse o normal, a exceção a regra, o particular o geral. Mas como nem só de induções era feita a vida, era preciso voltar e encarar o mundo real, e uma grande válvula de escape encontrada por Fred era pensar nas lindas pás de seu grande amor.
      Em um dia particularmente tranqüilo, Fred tomou coragem de convidar o gerador para sair. Não obteve resposta (só "uma dura e fria indiferença", como descreveu em seu diário imaginário na ocasião) e se sentiu profundamente amargurado. Inicialmente, colocou a culpa da rejeição na diferença de altura entre os dois. E sentiu-se baixinho, ridiculamente baixinho. Depois percebeu que talvez a turbina, que parecia tão diferente, fosse de fato igual aos demais, e não merecesse sua (com)paixão. Ele sofria de amor. Durante dias, Fred olhava para a turbina e esforçava-se por sentir ódio (mas e o que é o ódio, senão uma forma invertida e absurda de amor?).
      Fred não tinha com quem conversar. Os outros flamingos o excluíam porque ele era diferente — "o esquisitão do lago", diziam. E então Fred travava longos discursos com sua própria consciência, como uma forma de suprir todos os diálogos acalorados que nunca teve. Ele também criava amigos imaginários, conforme a conveniência. Quase todos eram flamingos como ele, mas de cores diferentes, e que o achavam "descolado" por ser verde.
      Em seu mundo, o flamingo verde seguia sendo diferente dos demais, mas era um diferente bom, difícil de explicar. Ele se sentia único, especial, diferente de no mundo real, no qual ele era constantemente zoado pela aparência por animaizinhos superficiais, incapazes de ir além do que está diante de suas vistas; incapazes de perceber que ali dentro, apesar da carcaça verde desengonçada, havia um cara sensível, um cara legal... Bastaria uma oportunidade!
      Às vezes Fred desejava ser um avestruz, para poder enterrar a cabeça na água e ficar com ela por lá, indefinidamente, sem sentir a necessidade de respirar; em outras oportunidades, desejava que tivesse a capa de invisibilidade de Harry Potter, para simplesmente poder viver sem ser incomodado (antes ser transparente do que verde — mas o importante para ele era o ser). Para esse flamingo simples, bastava que estivesse vivo para ser feliz. Prova disso é que Fred sonhava com um mundo em que todos os flamingos fossem coloridos, de todas as cores do círculo de Newton (se ele não gostasse de si mesmo, sonharia simplesmente em ser rosa). Mas ele preferia que o mundo melhorasse, que as pessoas mudassem, e que o preconceito acabasse. Ele era esperto o suficiente para saber que o problema não estava nele, e sim nos demais.
      Um dia, cansado de sua vida patética e infeliz, Fred tomou coragem e abordou sua paixão impossível outra vez. Não obteve resposta, mas estava disposto a arriscar. Reuniu forças sabe-se lá de onde, e partiu para cima da turbina: queria possuí-la à força; necessitava de amor. Agarrou-se a seu amor em movimento. Por alguns instantes, ele e as pás se confundiram, numa psicodélica mistura de verde desbotado com branco metálico. Vermelho, verde e branco. Vermelho, muito vermelho. Sangue. Respingos de sangue por todo o lago: Fred morreu enquanto girava nas pás eólicas — frenético de amor, até o último suspiro.
      Ao menos uma ilusão ele fora capaz de manter a vida toda... Morrera pela crença na possibilidade de um mundo melhor. E ninguém imaginaria que, afora todas as questões já consagradas do impacto ambiental da energia eólica, ela ainda fosse provocar o suicídio passional de um flamingo autista...


flickr
   

 feed

receba as atualizações do blog por e-mail



categorias academicismos
amenidades
blogs
direito
filmes
google
internet
livros
memes
mídia
orkut
politiquês
querido diário
stumbles
tecnologia


sobre
about me
del.icio.us
flickr
last.fm
orkut
43metas
nano novel
textos
flog
stumbleupon
Gilmore Girls





blogroll
animaizinhos toscos
argamassa
ariadne celinne
atmosfera
bereteando
blog de lynz
blog del ciervo ermitaño
direito de espernear
direito e chips
dossiê alex primo
efervescendo
enfim
every flower is perfect
garotas zipadas
giseleh.com
grande abóbora
hedonismos
il est communiqué
jornalismo de resistência
jornalismo na web 2.0
lavinciesca
marmota
novos ares
pensamentos insanos
rafael gimenes.net
reversus
sententia
universo anárquico
vidacurta.net
vejo tudo e não morro
w1zard.com


arquivo
agosto 2005
setembro 2005
outubro 2005
novembro 2005
dezembro 2005
janeiro 2006
fevereiro 2006
março 2006
abril 2006
maio 2006
junho 2006
julho 2006
agosto 2006
setembro 2006
outubro 2006
novembro 2006
dezembro 2006
janeiro 2007
fevereiro 2007
março 2007
abril 2007
maio 2007
junho 2007
julho 2007
agosto 2007
setembro 2007
outubro 2007
novembro 2007
dezembro 2007


etc.










Save the Net

Stumble Upon Toolbar

Creative Commons License

Official NaNoWriMo 2006 Winner