quinta-feira, 24 de novembro de 2005

  Da série: crimes bizarros

Roberval estava mal da grana. Parecia que todos os esforços que fazia para economizar no fim do mês se dissipavam com gastos imprevistos com material da escola para o filho da esposa. A família vivia em situação apertada, e Roberval estava cheio de dívidas. Mas como negar à mulher o dinheirinho para comprar uma caixa de lápis de cor para o Marquinhos? Um caderno para o Marquinhos? Um conjunto de tintas guache para o Marquinhos? Basicamente, tudo se resumia à vida do Marquinhos. E não se sabe se foi por ciúmes ou por realmente querer que sobrasse dinheiro no fim do mês para se desencalacrar, mas Roberval chegou à conclusão de que a única solução possível para se livrar das dívidas era matar o enteado. Menos uma boca para alimentar, menos um indivíduo para vestir, menos material escolar para comprar... Roberval fez a previsão de gastos e notou que ia economizar uma quantidade de dinheiro razoável. Daria até para guardar uma parcela para a pinga!
E então Roberval planejou todo o crime. Como a vida de Marquinhos resumia-se à tríade casa-escola-casa, o local mais adequado para o crime seria a própria escola do filho. Ia ser chocante, impactante, mas ao menos aos olhos da mulher ele pareceria inocente. E o importante era parecer inocente perante a mulher, pois tudo o que ele fazia, dizia, era para tentar resgatar seu casamento e garantir uma vida digna à esposa. As noites na cama já não eram tão quentes como no princípio, porque a todo momento o Marquinhos poderia ter um pesadelo e surpreendê-los. E não adiantava trancar a porta do quarto: o menino já sabia que bastava ser bastante insistente que alguém se levantaria para prontamente atendê-lo. Além disso, Roberval sentia-se impotente (no bom sentido) por não poder prover (financeiramente falando) melhores condições para sua mulher. Ela não reclamava, mas seu silêncio era como que uma resignação implícita.
Depois de muito pensar, Roberval decidiu que mataria Marquinhos com uma arma de caça, dessas que disparam chumbinho. Como o menino era pequeno, pensava, era só dar um golpe certeiro que ele morreria em seguida. Não seria preciso gastar muito dinheiro com isso.
O problema seria determinar como matar e não ser percebido... Principalmente em se tratando de um local público!
Algumas semanas depois, levando e buscando o enteado todos os dias à escola, Roberval decidiu que o melhor a fazer era atirar do terraço do prédio em frente (mas era preciso escalá-lo pelos telhados adjacentes; entrar pela porta da frente pareceria óbvio demais!) e acertá-lo na cabeça bem na hora da saída. Ele notou também que o enteado costumava ser um dos últimos a sair da escola, o que reduziria a probabilidade de errar de criança.
Nas semanas seguintes, parou de trabalhar: dedicou-se única e exclusivamente ao aprendizado de como disparar armas de caça e acertar o alvo. Tudo parecia brincadeira de criança, e de fato não deixava de ser, já que ao final de tudo o objetivo maior era atingir uma criança (por mais cruel que isso possa parecer).
E então, no dia marcado, Roberval posicionou-se, sem muito esforço (pois já acostumado) no terraço do prédio onde tinha planejado matar Marquinhos. Enquanto escalava os muros e telhados das casas vizinhas, imaginava mentalmente a cena: ele se posicionaria num lugar onde não fosse visível aos transeuntes, apontaria o revólver para a escola, e, em no máximo 7 minutos, o menino estaria saindo de lá, sozinho. Logo que passasse pela porta, ele olharia para os dois lados, para certificar-se de que seu padrasto não estava por perto. E, então, em um andar desolado, iria até a parada de ônibus esperar por ele. A idéia era atirar no Marquinhos bem no meio do trajeto. Roberval já tinha observado do alto do terraço o enteado saindo da escola tantas vezes que o cobrador do ônibus já nem achava tão absurdo o fato de ele subir no veículo a duas quadras da escola para descer na parada seguinte e pegar o menino.
E então, chegou a hora. Roberval se posicionou. Colocou a arma em punhos. Certificou-se de que estava carregada. Aguardou alguns minutos, que mais pareciam uma eternidade. Chegou a se questionar se devia ou não fazer aquilo, mas a indagação não demorou muito para fugir-lhe à mente assim que se lembrou de que não pagava a conta de luz há três meses e aquele era o dia em que iriam cortá-la... Sentiu raiva do menino. Tanta raiva, que queria matá-lo naquele momento. Sua visão ficou parcialmente cegada: só enxergava alvos. Para onde olhava, via aqueles anéis redondos com um ponto no meio. Sabia que quando atirasse, para onde mirasse, acertaria. Ao ver um corpo se mexendo lá embaixo, puxou o gatilho. Disparou com força. E acertou o anão que vendia doces na esquina...


Resultado: trata-se de erro sobre a pessoa... o agente, pensando em matar A, acerta em B. E esse tipo de erro não exclui a tipicidade do fato. Considera-se vítima virtual o alvo pretendido, e vítima efetiva aquele que morreu de fato. Roberval responderá pelo crime de homicídio doloso contra a vítima virtual (sua intenção era matar a criança... foi um mero detalhe o fato de ter matado uma pessoa diferente....) e sobre ele incidem qualificadoras e agravantes do crime correspondentes ao fato de ter [intencionado matar] uma criança (menor de 14 anos).
O texto acima trata-se de uma "dramatização" e leve adaptação do exemplo dado pelo Capez (e pelo professor, em sala de aula) de erro quanto à pessoa: "O agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder desfrutá-la com exclusividade. No dia dos fatos, à saída da escolhinha, do alto de um edifício, o perverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da vítima, supondo tê-la matado. No entanto, ao aproximar-se do local, constata que, na verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como bedel, confundindo-o, portanto, com a criança que desejava eliminar." (Curso de Direito Penal - parte geral, pg. 223)

Obs.: para se mais alguém não souber o que é bedel:
bedel s. m. Empregado que, nas universidades, faz a chamada e aponta as faltas dos alunos e lentes.
lente s. m. e f. Professor ou professora de escola superior.
(Dicionario Michaelis)
No relato acima, troquei amante por esposa, e bedel por vendedor de doces :P

Obs2: O outro crime da "série"

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